26.9.10

quarto mês: primeiro dia


 Começo a sentir falta de certas coisas. coisas que antes eram pequenas e dadas por garantidas. uma ida ao bairro, uma tarde na esplanada a comer caracóis, um abraço de mãe, de irmã.

Dou por mim a sentir falta de coisas, demasiadas coisas, o que me diz que em breve estarei pronta para deixar a cidade da qual nunca me pensei fartar. E se calhar nem é essa a melhor palavra para descrever o que começo a sentir crescer. Não é mesmo. Porque ainda tenho muitas coisas para ver, muitas para desfrutar e viver. Como o outono que agora começa, e o Inverno que lhe seguirá e com ele a neve que me trará longínquas memórias de milão, dos telhados brancos e da régua de 15 cm que o meu pai usava todas as manhãs para tirar a neve do vidro do carro antes de me levar para a escola.

Mas com o outono começam também a cair algumas folhas desta nogueira na maçã. Começo a pensar no tempo que falta, e no que vou fazer a seguir. Para onde ir, para onde partir e para onde chegar? Tantas perguntas que pela primeira vez, ainda que meio tremeliquentes, me permito perguntar, porque até agora senti, fui sentindo, que não seguia os meus próprios desejos. porque sentia que ia fazendo o que era suposto, esperado, porque tinha de ser, mas nunca parei mesmo para pensar no que eu queria, eu maria, queria. até que cheguei aqui... e tudo mudou.

É tão assustador como libertador estar de repente numa cidade nova e pensar que ninguém sabe onde estamos ou o que estamos a fazer.

De repente deixa de fazer sentido seguir outra que não a nossa vontade. Quando as pessoas, lugares à nossa volta são novos, tudo é novo, temos de confiar em nós e agir segundo o que nós queremos. E por isso de repente dou por mim a descobrir o que isso mesmo quer dizer. E as coisas que as nossas mães nos ensinaram surgem espontaneamente por cima do ombro, mas já não temos obrigatóriamente que lhes dar ouvidos. Porque não faz mal se não dermos, e passamos a dar-lhes outra apreciação, porque no fim de contas é mesmo bom que elas surjam, porque é bom ter tido quem nos ensinasse a ser e estar e se preocupasse conosco.

E escolher uns óculos que vou provavelmente usar nos próximos anos não é já tão assustador como antes, quando me obrigava a considerar penosamente todas as alternativas e consequentes apreciações por parte de outrem. não é nada difícil, e é uma feliz surpresa descobrir que afinal de contas sempre existiu uma única opção certa, que é a que nos põe um brilhozinho nos olhos.

19.9.10

terceiro mês: vigésimo terceiro dia



A vida engoliu-me.
Nova Iorque engoliu-me.

Digerida neste processo, partida em bocadinhos, até me tornar toda eu uma papa sem forma, sem lugar. A cada dia, mais desfeita, moida, até não ser mais do que partículas, essências de mim, e ser por fim absorvida pela vida, pelo tempo, pela cidade que me destruiu, passando a fazer parte dela, a ser, também eu, ela.

E, não obstante o processo de eliminação, conservo e nutro cada vez mais aquilo que me separa e distingue de nova iorque, algo tão simples mas que nunca pensei ter, até me confrontar com uma forma de vida diferente, um país e cultura diferentes. identidade do meu país, identidade portuguesa, uma coisa que não valorizamos lá muito até que estamos longe e damos por nós a ouvir sérgio godinho com novos ouvidos e a sorrir com cada palavra tão bem pronunciada na língua que já não ouvimos nas bocas, nas ruas, nas pedras da calçada que ficaram, também elas, do lado de lá do atântico.

Estou bem.
Mas estou também muito metida no meio desta grande engrenagem, onde o tempo passa a correr, a correr, a correr, e eu não sei se quero correr assim tão depressa como eles. correr para onde? Queria correr e corri até aqui, mas agora penso que se calhar quero mais é andar a um rítmo meu, se calhar saltitar, comer gelados, saltar e dançar de mãos entrelaçadas nas dele.

Tenho saudades de casa.
Tenho saudades da minha casa. mas que casa, se ainda a estou a construir?

Ando para a frente, corro até, imito os outros, mas por dentro sei que, ok, agora corro, aprendo, trabalho, faço sopa pela primeira vez e tomo conta de mim. Já era tempo de ver que a vida não mete medo nenhum. Sair da minha gaiola de algodão e ver que sim até posso cair e esfolar o joelho porque estava ao telemóvel na bicicleta a falar com ele-em-berlim-na-bicicleta-dele mas estou bem e fartei-me de rir porque é o tipo de coisas que me acontecem, ver a lomba e achar que consigo; cair em câmara lenta, apanhar o telemóvel e continuar a falar. Rir e rir e ir para o trabalho com o joelho raspado como se tivesse 6 anos e tivesse estado a saltar ao elástico no colégio. Feliz da vida.

Perdi o fio à meada.

Tenho é muitas saudades de casa porque ás vezes apetecia-me carregar num botão de pausa e ir só ali dar uns abracinhos e voltar.

Não sinto que isto seja a vida a sério, a vida à séria. Uma experiência, mas não sei porque é que não a vejo como parte da vida. se calhar porque é a primeira vez que vivo assim, longe de casa e por isso parecem mais umas férias grandes, mesmo mesmo grandes. Mas ao mesmo tempo, invade-me uma vontade de continuar a descobrir outras novas pseudo-casas, novas marias-noutro-lado-qualquer, novas experiências que por agora não são vida mas que um dia serão. porque já são, mas eu é que não vejo.

Porque às vezes parece um sonho, olhar pela janela do estúdio e ver o empire state building, andar na rua e ver pessoas e coisas saidas de filmes. Ouvir e falar numa língua de filme, de livro até, mas que não é uma língua de casa. Faz-me estar fora de mim, longe de mim, como se eu fosse um autocolante que não sabe mais onde está a parte de trás. Sinto-me assim, des-autocolada de mim às vezes - O que não faz mal. mas é estranho e interessante.

Se calhar por isso não escrevi durante um mês. Estive muito longe de mim, mais do que alguma vez estive, e só agora regresso, só agora olho para mim, respiro fundo, e vejo as transformações. o cabelo que ultrapassou os ombros, as bochechocas novas resultado dos cookies, das pizzas, dos chai lattes, dos noodles e da comida de merda que aspirei sem travão (porque nunca tive nenhum, nunca precisei), a ferrugem nas articulações a estalar na primeira aula de yoga depois de anos.

Yoga.
Yoga é casa, e não quero com isto soar como uma freak das taças tibetanas. Yoga é casa para mim porque durante anos representou uma rotina boa, uma colecção de momentos bons, uma sensação de estabilidade, de segurança, de sabedoria e amor que vem de dentro e que está desligado de qualquer ideia de tempo e espaço, simplesmente é o que é. Como ir ao cinema e esquecer-me que não estou em Portugal, só que com a diferença de que no cinema esqueço-me também de mim.
O yoga traz-me de novo a mim, e isso trouxe-me aqui ao blog, extensão de mim, que é também um fio de muitas pontas, por onde envio beijinhos imaginários que como diz o joão gilberto, são mais do que os peixinhos que há no mar. e eu fico maravilhada com as palavras dele e maravilhada também com a impermanência e relatividade das coisas - Aquilo que outrora não me despertou a atenção, toma agora um novo sentido, uma nova dimensão e forma.

Às vezes lembro-me das roupas que deixei em Lisboa. na altura de fazer as malas quis deixar tudo para trás, esvaziar-me de lisboa para me encher de Nova Iorque. mas dou por mim agora e tenho saudades de algumas coisas. mas não me importo, e digo para mim que quando voltar me vai saber bem, vai ser giro ver com novos olhos os bocadinhos da maria-antes-de-nova-iorque e, no contraste, na diferença, ver o reflexo de quem me tornei.