antes do primeiro chichi, do copo de água que lubrifica as nervuras, e que ajuda a acordar o corpo quente e adormecido, mas principalmente, antes de sair da cama, eis-me aqui.
por vontade, mais do que necessidade, de agarrar (o inglês grasp, que é precisamente o que quero dizer) um momento importante. Neste caso, é o momento antes do momento, e o facto de ainda não ter oficialmente começado o meu dia só reforça essa ideia. o dia ainda não começou. este dia.
e que dia! que dia dia dia dia!!!
sei que não escrevo geralmente sobre amores e desamores. parece-me mais fácil abrir um buraco na minha cabeça e vomitar o seu conteúdo, como se isso, esse aglomerado de pensamentos e emoções, estados de espírito reflexos da experiência que estou aqui a viver, fossem separados dos chamados assuntos do coração, que embora pareça estar fisicamente separado da cabeça, está a ela mais ligado que as estações de metro, com os seus túneis e aglomerados indissociáveis de cabos e tubos subterrâneos.
o gonçalo chega hoje. já não nos vemos desde que aqui cheguei (ver título do post). acordei e vi que o meu telemóvel se desligou a meio da noite por falta de bateria. só falámos ontem antes de ele se ir deitar, com as habituais 6 horas de diferença a que tivemos de nos habituar.
Tenho um namorado que vive no futuro. hoje, desceu a correr as escadas que dão para a escura cave de casa, e num só gesto repentino tirou o lençol que cobria a sua invenção, adormecida mas ansiosa por finalmente ter chegado o momento de ser usada. a máquina do tempo, ocupando a grande maioria da área da cave, tem uma pequeníssima entrada. abre-se uma portinhola com pouco mais de 50 cm e entrando, há que avançar de gatas para o seu interior, sem luz, à laia de toupeira. Foi o que ele fez, tremendo com a oficialidade do momento que, tendo repetido inúmeras vezes nos últimos anos, nunca antes lhe pareceu tão solene. todo ele tremia, ou seria a máquina que tremia e ele só tremia com ela? roncando como um estômago com fome, o grande monte de metal preparava-se para a sua primeira refeição, uma carne tenra de mais para as suas porcas e parafusos de aço. Ele continuou a avançar, a tremer, a máquina do tempo a roncar, e a tremer com ele. e chegado ao núcleo, finalmente pondo-se de pé, num espaço que ainda que tal o permitia, era claustrofóbico e escuro, apercebeu-se que devia ter projectado uma estrutura um pouco mais ergonómica, que aquilo assim não estava com nada. mas não tinha havido tempo para isso, era preciso por a coisa a funcionar o quanto antes. talvez para uma próxima vez. Mas assim que terminou esse pensamento, uma luz raiante irrompeu das paredes que o rodeiam à distância de um palmo lembrando-lhe de que o conforto não era propriamente a razão pela qual ali estava. Fechou os olhos e entregou-se ao momento, limpando a mente e aceitando o que estava para acontecer, algo que já não lhe pertencia nem estava no seu poder mudar. toda a engrenagem que começou com um pensamento e um desejo de atravessar a linha temporal e espacial que os separava era agora como um rio poderoso que não se pode travar e em que cada molécula de água, cada elemento que o torna no que é - um rio - não é mais do que um acontecimento-momento isolado no nosso fio-vida, insignificante por vezes, esquecido até, possívelmente, não deixa de produzir efeitos no resto do espectro de acontecimentos. Causas e consequências, de mão dada, formam uma corrente fortíssima que inevitavelmente nos leva de encontro ao que mais desejámos. E agora o desejo já nem é nosso, está entregue à corrente, pois o nosso papel é apenas o de sonhar e desejar com todas as moléculas - de água ou não - que nos compõem.
E eu mal posso esperar para que ele chegue e tenho de me despachar para o ir buscar ao aeroporto-máquina-do-tempo e o encher de beijinhos.
Que o dia comece!
Robe à la Française
Há 6 anos